O carro reflete o nosso estado de espírito. O que diz o seu sobre si?

Uma coleção de CD’s no porta-luvas. Jogos de tabuleiro no porta-bagagens. Uma flor de peluche no tabliê: o nosso automóvel guarda a nossa vida. Uma verdadeira segunda casa, que diz mais sobre nós do que, à partida, podíamos pensar.

Maria Borges é psicóloga e acompanha a saúde mental das crianças. Beatriz Afonso é estudante de mestrado e apaixonada por comunicação. Irina Duarte conjuga os grandes amores da sua vida: os filhos e a ciência. Aparentemente não têm nada em comum, mas há algo a uni-las: são mulheres, condutoras, independentes. Quando as mãos seguram o volante e o vento lhes bate na cara, sentem-se livres. Com o pé esquerdo na embraiagem e a mão direita nas mudanças, elas são donas do seu destino.

Escondidos na bagageira do carro de Maria Borges estão objetos que, à partida, não revelam muito sobre a sua dona. Só a partir de uma inspeção mais minuciosa se entende que os jogos de tabuleiro se destinam às crianças que a psicóloga de 49 anos acompanha nas sessões. O seu trabalho no Serviço de Psicologia e Orientação de um agrupamento de escolas no distrito de Santarém obriga-a a desdobrar-se em consultas nas várias instituições de ensino do grupo. O carro é o seu fiel companheiro em todas essas viagens.

“É o meu meio de transporte de ida e volta para o trabalho e preciso dele para levar material, quer sejam testes de avaliação, quer sejam jogos de estimulação cognitiva para trabalhar com os miúdos”, explica. O seu carro foi também essencial na mudança de carreira há dois anos. Hoje, enquanto percorre os quilómetros que separam os seus “miúdos” uns dos outros, sente- se finalmente realizada.

Embora faça a maioria destes percursos a solo, nunca está sozinha. Guardado num compartimento está um terço, dado por uma antiga vizinha. Pendurado no retrovisor interior, balança o Mike, um bonequinho do filme ‘Monstros e Companhia’, que pertencera ao marido. Ambos são “lembranças e recordações de pessoas” que gosta de manter por perto. Como amuletos para dar sorte a cada viagem.

Maternidade sobre rodas

Já para Irina Duarte, o seu amuleto da sorte é uma flor de peluche que guarda no tabliê. “Deram-me uma vez e já nem me lembro quem foi. Mas já passou de carro em carro e tenho-a sempre comigo”, explica, sempre com um olho no que os filhos estão a fazer. Conjugar o trabalho de consultora científica com os horários das crianças nem sempre é fácil. Por isso, o carro é a peça essencial para fazer com que toda a rotina funcione.

Com as cadeirinhas sempre a postos e um ou dois carrinhos e bonecos perdidos nos bancos de trás, Irina vai levar e buscar os filhos à escola, à natação e aos avós. Porém, confessa que os seus momentos favoritos atrás do volante acontecem quando mais ninguém está com ela. “Conduzir dá-me uma sensação de liberdade, especialmente se não houver trânsito e for numa autoestrada, sozinha e com a música ligada”, admite.

Mais do que uma utilidade, estar na estrada, para Irina Duarte, é uma forma de empoderamento. Por essa razão, gostava que todas as mulheres soubessem a importância de ter essa autonomia, incluindo a sua mãe. “A minha mãe, que é uma mulher muito despachada e independente, deixou de conduzir quando estava grávida da minha irmã. E acho um desperdício, porque ela podia fazer tanta coisa e acaba por estar limitada. Todas devíamos conduzir, tal como os homens”, insiste.

A banda sonora da sua viagem

São cinco e meia da tarde de uma segunda-feira. Os carros estão parados, num pára-arranca constante. Ninguém gosta de estar preso no trânsito. Mas Beatriz Afonso torna estas alturas, geralmente stressantes, em momentos divertidos com a sua coleção de CD’s, guardada no porta-luvas. Com um álbum para cada ocasião, elege ‘Os Pontos nos Is’ dos Quatro e Meia para ganhar motivação extra. De manhã à noite, os dias acabam como começam: com música e a mesma companhia de sempre, o carro. “É como as pessoas dizem. O carro faz quase parte da família”, diz.

Agora, a jovem de 21 anos está focada apenas no mestrado em Novos Media e Práticas Web, na Universidade Nova de Lisboa. Ainda que o dia a dia esteja mais calmo, há coisas que não mudaram: o carro permanece a constante na sua vida. “Ter carro dá a possibilidade de fazer coisas que, de outra forma, seriam impraticáveis. É uma sensação de liberdade e independência”, afirma.

Foi em busca dessa emancipação que Beatriz tirou a carta há dois anos. Desejo esse sempre alimentado pela mãe. “A minha mãe conduz e, desde pequena, dizia-me que, quando tivesse idade, tirar a carta era algo bom para mim própria. Que seria agora ambas estarmos dependentes do meu pai?”, brinca.

Com os óculos de sol à distância de um braço e os saltos altos no porta-bagagens para trocar quando estacionar, Beatriz segue com o pé no acelerador. Considera que o carro é um espelho de si mesma, mais arrumado consoante as ideias estão organizadas na sua mente. E, mais do que isso, “o meio que nos permite sermos livres”, afirma.